“Morrendo por Sexo”: série da Disney+ debate tabu ignorado no tratamento do câncer

Crédito: divulgação

Narrativa baseada na história real de Molly Kochan levanta discussão sobre impactos do tratamento na sexualidade feminina; Dados globais indicam que mais de 80% das pacientes não recebem orientações específicas sobre saúde sexual e emocional

A série “Morrendo por Sexo”, recentemente lançada no Disney+, quebra tabus ao contar a história real de Molly Kochan, uma paciente com câncer terminal que decidiu redescobrir sua sexualidade após o diagnóstico. A narrativa provocativa levanta um tema frequentemente negligenciado no tratamento oncológico: a saúde emocional e sexual de quem enfrenta o câncer.

De acordo com a análise Enhancing Sexual Health for Cancer Survivors[¹], recentemente publicada pela Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO, sigla do inglês American Society of Clinical Oncology) revelam que as alterações na função sexual após tratamentos oncológicos são extremamente prevalentes, afetando até 90% do público feminino e entre 40% e 85% do masculino deste grupo. Entre os problemas mais comuns estão a redução da libido, disfunção erétil, alterações na autoimagem e impactos significativos nos relacionamentos íntimos.

Para Cristiane Bergerot, psico-oncologista e líder nacional da especialidade equipe multidisciplinar da Oncoclínicas&Co, o apoio psicológico durante o tratamento oncológico não é um elemento acessório, mas parte essencial do cuidado integral. “O cuidado oncológico vai além do tratamento da doença, é acolher a dignidade, o equilíbrio e o bem-estar integral da pessoa. Precisamos de uma medicina que reconheça a complexidade do ser humano, integrando corpo, mente e espírito para oferecer resultados terapêuticos mais efetivos”, afirma.

O diagnóstico de câncer pode representar um divisor de águas. Além dos desafios físicos impostos pelos tratamentos, o impacto psicológico é profundo e muitas vezes subestimado. Estudos publicados na Frontiers[²] indicam que cerca de 25% dos pacientes oncológicos apresentam sintomas de depressão, e até 45% relatam níveis elevados de ansiedade.

“Intimidade e sexualidade são dimensões centrais da identidade humana – e, no contexto oncológico, seguem sendo silenciadas nos consultórios”, explica Bergerot. “O caso de Molly, retratado na série, é extremo, mas ilustra como o diagnóstico pode desencadear uma reavaliação profunda da vida, incluindo relacionamentos e desejos”.

Barreiras ao diálogo sobre sexualidade

Apesar da alta prevalência de disfunções sexuais após o câncer, pacientes relatam que suas preocupações sobre sexualidade raramente são abordadas pelos profissionais de saúde. Um dos dados citados no artigo da ASCO revela que 86% das mulheres jovens com câncer de mama relataram que seus médicos foram incapazes de abordar questões de saúde sexual[³].

“Há uma barreira cultural significativa que ainda limita conversas francas sobre sexualidade na prática clínica, especialmente para pacientes oncológicos. Muitos profissionais sentem-se desconfortáveis, têm restrições de tempo ou simplesmente não receberam treinamento adequado para abordar essas questões”, pontua Bergerot.

A especialista destaca que há também uma disparidade de gênero nessas abordagens. “Estudos mostram que apenas 22% das pacientes mulheres são questionados sobre mudanças em sua vida sexual durante o tratamento, enquanto entre os homens esse número chega a 53% – uma diferença que reflete um viés que precisamos superar [⁴].”, acrescenta.

Para Bergerot, é essencial compreender que a saúde sexual não pode ser ignorada no contexto oncológico. “A sexualidade não é apenas física – ela envolve emoções, identidade e relações. E todos esses aspectos são profundamente impactados pelo câncer”, explica.

Tratamentos como quimioterapia, cirurgia, radioterapia e terapia endócrina podem desencadear alterações hormonais significativas, induzir menopausa precoce, causar disfunção erétil e gerar desconfortos físicos que comprometem a intimidade.

“No aspecto psicológico, questões relacionadas à autoimagem, medo de recorrência, depressão e ansiedade podem afetar profundamente a experiência da sexualidade[⁵]”, detalha a especialista. “Socialmente, o diagnóstico muitas vezes transforma a dinâmica dos relacionamentos, com parceiros assumindo papéis de cuidadores, o que pode complicar a expressão da intimidade sexual”.

Por isso, o acompanhamento psicológico durante o tratamento vai muito além do conforto emocional. Pacientes orientados e amparados conforme suas necessidades demonstram maior adesão aos protocolos médicos, o que impacta diretamente nesses resultados.

“Com o suporte psicológico, o paciente enfrenta o tratamento com maior resiliência, clareza e conexão com a equipe médica. Uma equipe multidisciplinar especializada ajuda a gerenciar emoções, criar estratégias de enfrentamento e também orientar familiares nesse suporte”, ressalta Bergerot. 

Entre os benefícios do acompanhamento psicológico integrado à linha de cuidado, a especialista destaca a redução do estresse, o fortalecimento da rede de apoio e a melhoria significativa na qualidade de vida. 

Desafios e caminhos para o futuro

Apesar da relevância comprovada na melhoria da qualidade de vida, a psicoterapia ainda enfrenta barreiras consideráveis no Brasil. O Índice Instituto Cactus-Atlas de Saúde Mental[⁶] indica que apenas 5,1% dos brasileiros recebem acompanhamento psicoterapêutico regular.

“Ainda é urgente desmistificar a psicologia no cuidado oncológico – ela é parte do tratamento, não um complemento. O câncer não afeta apenas o corpo; ele impacta o indivíduo de forma holística, e a abordagem terapêutica deve refletir essa complexidade”, enfatiza Bergerot.

Para melhorar esse cenário, a especialista aponta a necessidade de políticas públicas robustas, melhor capacitação dos profissionais de saúde e campanhas de conscientização que desmistifiquem o papel da saúde mental no tratamento.

“Séries como ‘Morrendo por Sexo’, apesar do título provocativo, prestam um serviço importante ao trazer à tona discussões sobre intimidade, autonomia e autodescoberta no contexto do câncer. Elas nos lembram que, mesmo diante do diagnóstico mais desafiador, cada paciente tem seus próprios desejos, medos e a necessidade fundamental de conexão”, conclui Cristiane Bergerot. 

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